sexta-feira, 23 de abril de 2010

AVATAR - Admirável mundo novo

Isabela Boscov, de Los Angeles

Certa vez, alguém perguntou a Cecil B. DeMille: "Se o senhor fosse Deus...". "Como assim, se eu fosse?", interrompeu DeMille. O diretor de Os Dez Mandamentos era um megalomaníaco famoso, mas nem de longe o único em sua categoria. Quase todo cineasta, confesse ou não, tem um complexo de Deus. Os que criam pequenos mundos e decidem o destino de pequenos personagens o têm. Os que criam grandes mundos e os povoam, batizam suas criaturas e dão a elas uma história costumam achar que não se trata de complexo, mas de fato objetivo. Entre esses, James Cameron é o deus dos deuses – por determinação própria e também porque é o recordista aparentemente imbatível de bilheteria (1,8 bilhão de dólares por Titanic), e em Hollywood isso basta para autenticar a natureza divina. Cameron, porém, é um Deus de Velho Testamento, colérico e implacável, e ainda mais duro que o original, já que não quer saber de descansar no sétimo dia nem deixar que os outros descansem. Há quatro anos, ele comanda com raios e vaticínios – além da promessa de vida eterna nos créditos de um filme seu – uma equipe gigantesca, na missão de criar mais um mundo: o mundo luxuriante e vertiginosamente tridimensional de Avatar (Estados Unidos, 2009), que estreia no país na próxima sexta-feira.


Em Avatar, um fuzileiro naval paraplégico, Jake Sully (Sam Worthington), é enviado ao planeta Pandora para uma missão especial: seu código genético será combinado ao dos habitantes locais, os Na’vi. O ar de Pandora é tóxico para o organismo humano. Mas, realocado nesse corpo híbrido, Jake poderá explorar livremente – e discretamente – o território. A colônia de terráqueos instalada ali quer garimpar as reservas de um minério valioso, e os Na’vi, que eles consideram um povo primitivo, estão em seu caminho. Porém, mal se vê livre para andar pelas florestas fantasmagóricas de Pandora em seu corpo de 3 metros de altura, pele azulada e luminescente e feições felinas – o aspecto dos Na’vi –, Jake se apaixona por uma nativa, Neytiri (Zoe Saldana), e começa a se enamorar do inimigo. Todos os traços comuns à obra de Cameron confluem aqui: a paixão por personagens femininas fortes; a história de amor meio kitsch, mas sincera; e a compreensão superlativa da relação conflituosa que o homem desfruta com o mundo físico e com a tecnologia que cria para mediar esse relacionamento. Acima de tudo, Avatar põe em relevo, mais ainda do que O Exterminador do Futuro, O Segredo do Abismo ou Titanic – todos paradigmas de pioneirismo e também de mania de grandeza –, o espírito irrefreável de desafio com que o diretor se joga em seus projetos.


Segundo seu próprio criador, Avatar é o que de mais complicado já se tentou fazer no cinema. Desconte-se a queda de Cameron para o exagero – e a afirmação continua valendo. Várias das tecnologias empregadas pelo diretor foram concebidas especialmente para o filme, como o monitor virtual, que lhe conferiu liberdade de ação inimaginável. Outras técnicas já haviam sido usadas com imenso sucesso, como a "captura de atuação" com que a Weta, a empresa de efeitos de Peter Jackson, desenvolveu o Gollum de O Senhor dos Anéis e o gorila de King Kong. Em Avatar, foi a própria Weta que deu o sopro de vida aos Na’vi – mas refinou seus programas até o ponto em que o cérebro deixa de distinguir o que é real e o que só existe no computador. Todo o empuxo de Cameron tinha uma única finalidade: propiciar ao espectador uma experiência de imersão total em um filme em 3D. VEJA assistiu à sessão para a imprensa de Los Angeles e constatou que essa imersão é de fato de uma profundidade sem precedentes – algo como ser lançado em um mundo novo tão palpável que se tem a ilusão de ter memórias dele.


De acordo com Jeffrey Katzenberg, sócio do estúdio DreamWorks e um dos revitalizadores da animação, a indústria de cinema é uma até o dia 17 – e será outra no dia 18, quando o filme começa a ser exibido. "O cinema teve apenas duas revoluções fundamentais: a do som e a da cor. Avatar vai liderar a terceira – a do 3D", disse Katzenberg. Nos últimos dois anos, o 3D vem ganhando terreno a passos largos, sobretudo nos desenhos animados, mas também em filmes com atores e ação reais, o live action. Restam dúvidas, entretanto, se ele não é meramente um truque de momento para reter o público em sua migração da sala de exibição para o DVD. Tudo indica que Avatar vai fulminar essas dúvidas. Vai, na verdade, instituir um novo padrão. Da mesma maneira que aconteceu com o advento da cor, à medida que a tecnologia se aperfeiçoa e seus custos caem, também o 2D deverá virar relíquia, é no que acredita Cameron – além de outros entusiastas como Steven Spielberg, Ridley Scott e Peter Jackson. "Creio que ele tem razão", disse ao jornal The Guardian o diretor do Conselho de Cinema do Reino Unido, Peter Buckingham. "Até porque o 3D é o parâmetro natural da visão humana. Em, digamos, vinte anos, o 2D só será usado por razões artísticas específicas – da mesma forma que hoje Woody Allen, por exemplo, às vezes filma em preto e branco." O único obstáculo, claro, é que o 3D sempre vai exigir o uso de óculos especiais no cinema – ainda que os de hoje sejam oticamente confortáveis e até bonitos, e não fajutos como aqueles de papelão que se usavam nos anos 50.


Há doze anos, desde Titanic, James Cameron não lança um filme. Toda a sua reputação está investida em Avatar – e não só ela. Cameron foi o primeiro a quebrar a barreira dos 100 milhões de dólares de orçamento, com O Exterminador do Futuro 2. Foi o primeiro também a romper a barreira dos 200 milhões, com Titanic, que só não teve a produção suspensa porque o diretor abriu mão de sua remuneração (o estúdio depois a restaurou) e porque está para nascer o executivo capaz de enfrentar sua ferocidade. "Diga a ele que ele está sendo ****, e que se ele parar de se debater vai doer menos", foi o recado que mandou a um chefão de estúdio que reclamou de seus atrasos. Desta vez, a versão oficial coloca o orçamento de Avatar em 237 milhões de dólares – menos que o de Homem-Aranha 3, que custou 258 milhões. Mas o jornal Los Angeles Times, que tem uma excelente cobertura do setor, crava as despesas de produção em 310 milhões. O que daria a Cameron a honra de ter abatido também essa terceira marca. Somados os gastos de distribuição e marketing, a fatura bate em 500 milhões. Para o diretor, porém, o que Avatar representa não se conta em dólares. "Se você estabelece metas ridiculamente altas e falha, você terá falhado muito acima do que os outros consideram sucesso", postula ele, na sua típica lógica de conjugação de opostos.


Cameron conta com um núcleo de seguidores fiéis que não desistem dele, apesar dos seus parâmetros de excelência inatingíveis e da maneira tirânica com que os cobra (Cameron, hoje com 55 anos, diz ter melhorado; algumas das pessoas à sua volta afirmam que a diferença é bem sutil). Mas há pouca gente de colarinho branco nesse grupo. Na maior parte, ele é formado pelos que o diretor considera seus verdadeiros semelhantes: seus técnicos, que às vezes chegam perto de arriscar a vida para cumprir suas ordens. Como nas filmagens de O Segredo do Abismo, em que equipe e elenco tiveram de se diplomar em mergulho (Cameron é um mergulhador fanático, capaz de descer mais fundo em mergulho livre do que alguns profissionais o fazem em mergulho assistido) para passar dez horas por dia, durante meses, submersos em um tanque gélido. As bolinhas de polipropileno que flutuavam na superfície para diminuir a refração da luz entravam em ouvidos, narizes e pulmões, provocando infecções a rodo. O cloro era tanto que os cabelos ficavam brancos e tão frágeis que, ao congelarem em contato com o ar, se quebravam. Foram semanas de infelicidade. Mas resultaram em um filme que, embora recebido com reservas em 1989, impressiona mais a cada revisão.


Também Avatar começou a ser gestado por causa da voracidade de Cameron em desbravar. "Palavras como ‘não’ e ‘impossível’ o deixam sexualmente excitado", brincou o ator Bill Paxton, veterano do time, à revista The New Yorker. "Impossível", entretanto, foi a resposta que ele obteve de sua equipe quando, em 1995, lhe entregou um esboço de Avatar para estudo: os recursos que a história requeria eram então algo tão factível quanto o teletransporte de Star Trek. A ideia foi para a gaveta, mas não ficou esquecida. Enquanto se dedicava a suas outras paixões, a exploração submarina e uma sociedade científica que advoga a colonização de Marte, o diretor aproveitou as oportunidades que esses interesses propiciavam para ir cercando Avatar, até jogar-lhe o laço. O passo fundamental foi desafiar o cinegrafista Vincent Pace a projetar uma câmera de 3D ideal: leve, ágil e capaz de rodar simultaneamente em 2D e 3D. Até poucos anos atrás, as câmeras de 3D formavam um conjunto de 150 quilos. Trabalhar com elas exigia músculos e resistência à frustração: na prática, não havia como fazer um longa-metragem de live action inteiro em 3D com um mínimo de qualidade. Todo o esforço de Cameron e seus amigos tecnólogos se dirigiu à tarefa de tornar o 3D mais ágil e produtivo que o 2D. Os protótipos foram testados em dois documentários sobre o fundo do mar, Ghosts of the Abyss e Aliens of the Deep. (Os quais, incidentalmente, levaram Cameron a desenvolver também veículos submergíveis capazes de levar câmeras até profundidades antes inexploradas.) Em 2005, Cameron decidiu que Avatar já se tornara viável e não parou mais de trabalhar no filme. Agora, quatro anos depois, ele acaba de provar de novo que o impossível não existe. Particularmente quando se é – ou pelo menos se acredita ser – uma espécie de deus.


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